sábado, 4 de março de 2017

O Bloco Operatório é um Sítio muito Frio

Faltam duas horas para as 16, hora prevista da cirurgia. E até essa hora só uma pessoa me há-de vir dar uma satisfação do que irá acontecer. Mais ninguém. Talvez seja um procedimento normal. Eu não achei tão normal assim. Uma senhora que me pareceu ser alta, de olhos claros, aproxima-se de mim. Diz-me, pausadamente, que é a anestesista que vai adormecer. As suas rugas e a sua simpatia tranquilizaram-me. 

Passariam dez minutos das 16, quando chegou um homem, bem parecido, vestido de verde, acompanhado da enfermeira de serviço. A enfermeira pareceu-me sempre muito profissional, com um rosto de simpatia, bonita, de cabelos claros, lisos e apanhados. O homem, atraente, e de voz quase radiofónica, de cabelo curto, escuro e de barba de dois centímetros como agora se usa, vinha-me buscar.

A minha hora tinha chegado e a ansiedade que se fora acumulando poderia começar a desaparecer. Se eu queria fugir do altar para não dar o Sim, deveria tê-lo feito antes, agora já era tarde de mais!
Ele pegou na cama, de forma muito experiente, sem nunca ter batido em sítio nenhum, e levou-me, pelo elevador do 5º piso onde eu estava hospedado, ao Bloco Operatório (que seria no 3º ou no 2º piso). Enquanto ele me levava, os meus olhos fossem uma câmara 3D, daquelas portáteis, imóvel, estilo Gopro, virada para cima, a filmar tudo por onde passávamos.

Há sempre uma primeira vez para tudo, e era também a primeira vez que eu iria entrar num bloco operatório. Sempre muito simpático - tratou-me por tu, e depois de me perguntar de onde era, ficamos a saber que éramos ambos do mesmo concelho, ainda que de zonas diferentes, ele do centro da cidade, e eu de uma freguesia da periferia. Chegámos, e então ele deu-me umas calças, finas, azuis escuras, para eu vestir, que era para ficar mais confortável, e uma touca para apanhar o cabelo. "Estás mais habituado, coloca tu", disse-me. E eu lá tentei meter toda a quantidade de cabelo que tenho dentro daquela coisa frágil. Acho que ficou bem. 


E foi nesse momento que me apareceu mais um daqueles sinais, coisas insignificantes, mas a que eu atribuo sempre especial valor. Ele tinha deixado a pasta com o meu processo, pousada do meu lado esquerdo, em cima de uma qualquer mesa de apoio. Nessa pasta, em letras grandes, estava escrito, mais ou menos a meio: C-3. Eu comecei de imediato a rir! Não poderia ser C-1 ou os outros C todos, C-5 como vi depois. Não. antes de ser operado, aquele esse C, de Cirurgia, claro que tinha de ser especificamente C3!
E relembro agora. Entrei no hospital às 10h da manhã onde fui recebido por duas enfermeiras no 2º piso. Fizeram-me um enorme questionário, colocaram-me um cateter, e antes de subir, uma delas liga para a enfermaria, "o doente que iam receber, já não vai para aí, vai para Cirurgia 3". E não fosse este pormenor, naquela capa já não iria aparecer um 3. À última hora alguém decidiu mudar as coisas, só para eu me rir antes de ser operado.

Ri-me e como que isso me fez descontrair um pouco, como que aquele pormenor me quisesse fazer sentir guardado por um dos meus anjos. De seguida coloca-me uns lençóis ou cobertores por cima das costas. Estavam "quentinhos" disse-lhe! Mas depois percebi o porquê daquilo, quando me levaram para uma sala, onde fiquei à espera, sozinho, a olhar para alguns equipamentos eletrónicos, e onde estava mesmo muito frio!

Finalmente um sítio fresco naquele hospital! O hospital mais parece um grande centro comercial, em que as funcionárias colocam as lojas a uma temperatura que mais parecem verdadeiras saunas. Perguntei, e tal como pensava, disseram-me que por causa dos micróbios. Pois, então se calhar não faz muito sentido que as enfermarias estejam tão quentes não é?

Acho que a partir dali, do momento em que me levaram, a angústia foi desaparecendo e deixei-me ir. Afinal já nada dependia de mim. A anestesista era o macho-alfa que dominava completamente toda a cena. Duas mulheres, mais jovens, uns metros à frente dos meus pés, sentadas, conversavam uma com a outra, ao que a anestesista indaga:
"Vocês já estão preparadas"?
Perante um afirmativo "sim" ela exclama:
"É que não parece mesmo nada"! (toma e embrulha!)

Começou a mandar fazer isto e aquilo. Tantos miligramas disto e daquilo. Do meu lado direito, alguém me ajeitava o meu braço para ficar bem, "porque na cirurgia ele vai cair". E de repente a anestesista, colocou-me uma máscara verde sobre a boca e o nariz... Algo já se começava a passar porque, contra a minha vontade, eu estava a adormecer. 
"O soninho está a chegar" disse-me ela. E naquele momento apaguei. 

Creio que duas horas depois acordei. 
Estava numa grande sala, num canto do lado direito, e do meu lado esquerdo tinha outras camas, em frente também. Alguém veio ter comigo e disse-me "correu tudo bem".
Mas se calhar também ninguém acorda de uma cirurgia e nos vêm logo dizer "olhe, correu tudo mal, você está mesmo fodido"!
A enfermeira havia-me dito que contasse com duas horas, e eu já sabia que, se a minha mãe ligasse para lá às 18 como me tinha dito, ainda não iria ter notícias minhas. Mas se não estou em erro, acho que ouvi alguém falar em meia-hora de cirurgia, mas creio que estive lá as tais duas horas. 

O Bloco Operatório é de facto um sítio muito frio. Ali chegam pessoas para verem os seus corpos abertos, cortados, e agrafados de novo. Não é um sítio de afetos. Eu sei que é parvo, mas logo depois de acordar gostava que alguém me desse um abraço. Ainda meio morto-vivo, estendi o braço e a mão à senhora, que por ali andava, como outras, como se fosse uma espécie de abelha-operária a ver os favos de mel que eram as pessoas que acordavam e precisavam de rápida atenção. 

A algum custo ela lá me apertou a mão. Mas não me deu um abraço..., porque o Bloco Operatório é um sítio muito frio.

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